sexta-feira, novembro 13, 2009

Reflexos quebrados

A água corria abundante no lavatório mas era o espelho, aquela imagem gasta pelo esmagar dos sonhos, que me captava os sentidos. Entre o cabelo esgadelhado, os olhos quase a chocar com a órbita de Júpiter ou Saturno e as rachas na pele outrora limpa, tudo parecia anunciar a queda iminente do meu império de beleza e perfeição. Andava a dormir mal, talvez fosse essa a razão de tamanho caos, mas seria mesmo? Se fosse, havia solução: uma semana de férias, uma terapia do sono de trazer por casa, 400€ para uma criada estrangeira a tempo inteiro e estava o problema resolvido! Só isto, veja-se bem… Até dava vontade de começar já, de sentir os anos em contagem decrescente, num nascer às arrecuas até me aninhar no ventre materno donde saíra há tanto tempo.

Mãe, pega-me ao colo!... Não vês as lágrimas a lavarem-me a face? Segura-me mãe, com essa mão segura do bem que faz, sinal dos anos que por ti passaram e por mim não. Eu nada aprendi de ti, do pai, da vida, de nada. Nada aprendi de nada. Recusei sempre essa mão com que me embalas e agora acabei só, com um espelho pela frente a reflectir o vazio dos anos que nunca quis que passassem; mas eles quiseram e foram mais fortes que eu. Eras tu quem dizia que eu era uma força da natureza, lembras-te? Afinal, podes rir-te… A natureza soprou-me, desgastou-me, vergou-me até fazer de mim um pau velho e seco para, touché, acabar por me vencer. Agora somos iguais, eu e tu. Qualquer dia, quando formos a passear na rua, ainda nos chamam de irmãs! Sim, estou a rir-me mas é para ver se seco este pranto. Os paus velhos e secos já viram tanto na vida que não choram, compreendem.

Não, mãe, não soltes tão depressa essa mão segura com que fecho os olhos e mal prendo as lágrimas. Julgavas que era da água da torneira? Não te enganaste muito… Ainda sinto os meus dois diques prestes a extravasar. Eram lindos, não eram? Pincelados num azul veraneante quando a vida era uma criança, quase parece ter sido noutra encarnação… Deixa-te de coisas, eles agora são turvos, mais fazem lembrar um mar encrespado com ondas de 3 a 4 metros vindas de sueste. Sim, sim, dizes isso para me animar e eu agradeço, mas estás a mentir. Oh! Pára com isso, a sério… Sou agora a tua criança linda! E há-de ser com a idade que tenho… Olha para o espelho, mãe. Não vês o caco que estou? Repara bem nas fissuras do estuque, nas fendas que já acompanham os cantos das janelas e da porta, nas telhas fora do sítio a enquadrar o degredo. Tudo pede restauro nesta casa, pede carinho. Tu sempre tiveste o pai ao teu lado, mas e eu? Quem me acompanha? Tu? Ah, ah, ah, ah, ah, ah,... Ai, ai, tiveste graça! Juro que me ri de bom grado! Até me secaste as lágrimas... Ora que ideia a tua… Ainda não estou pronta para te acompanhar nos passeios do Inatel! Só para a reforma faltam-me mais de 20 anos, quanto mais para te acompanhar e à Natércia nas viagens a Fátima! Deus me livre… Hã? Não blasfemei, foi só uma expressão, não quis… Oh, já estás a irritar-te! Quando toca à religião vens sempre com a mesma conversa da treta. Então, não me baptizaste quando não tinha vontade própria e depois, com os meus olhos bem abertos, é que querias fazê-lo? Lamento, chegaste tarde! Nunca serei como tu, a tentar salvar o mundo cabisbaixa, agarrada ao terço, vergada em frente à cruz e rezando por um milagre. Eu pego no mundo e tento apenas salvar a minha pele e a minha carteira. Sim, talvez ajudasse mais algumas pessoas, mas poucas, muito poucas… Nunca se sabe muito bem com quem contar e já recebi tanta facada nas costas que o melhor é puxar com uma mão e empurrar com a outra. Cada um que se cuide como melhor sabe! Será que já te esqueceste que sou uma força da natureza?

Bem, depois de tanta conversa podes só dizer-me que horas são? Quase meio-dia!? Oh Deus, estou atrasadíssima… Tenho um almoço combinado para daqui a uma hora e nem sequer tomei banho! O Pedro mata-me se não estiver lá a horas! E a culpa é tua, metes-te com essa merda de conversa e só atrasas a vida a uma pessoa. Tenho de ir já para o duche e rápido. Tchau, ó velha! Beijinhos blasfemantes…


Ah, e obrigada por me aturares!