segunda-feira, dezembro 19, 2011

Último sopro

E se um dia partisse
Numa viagem às arrecuas
E se me dissesses agora
As sílabas que não desnuas?
 


E se fosses tu embora
Sem tentar sorrir de novo
E se lutasses um pouco
No ringue onde me comovo?

 
E se eu estivesse mouco
Querias-te afónica de tanto gritar
E se o sim fosse mel
Que não te custasse pronunciar?


E se a tua na minha pele
Pudesse ser doce realidade
E se o sonho dos deuses
Fosse maior que toda a idade?


E se eu te visse feliz
E se o pudesses apalpar
E soubesses o quanto quis
Nunca sair pelo ar.


Última finta, último sopro…

terça-feira, novembro 01, 2011

Um poema que fica

Entre duas janelas que vigiam,
Há um sonho que fica e a constelação que se agita
Num longo serão.

Entre duas taças que tilintam,
Uma lareira crepita e bafeja a luz que liga
Dois corpos em ilusão.

Entre dois cadeirões que dançam,
Sai uma música antiga e até o ar se revira
Nas costas da paixão.

Entre dois suspiros que pairam,
Perde o cuco a mira e nada os avisa
Da continuação.

Entre dois beijos que avançam,
O tempo eterniza aquela simples faísca
No nosso coração.

Lá fora, duas ondas passam
E um poema fica.

sábado, outubro 29, 2011

Papel de prata

Exausto, o fim do dia chegou até mim e enrolámo-nos numa interminável noite de carícias.
Ela era o meu fim.
Estes eram os nossos dias.

sexta-feira, outubro 07, 2011

Húmida terra

Sou um estado qualquer numa coisa vazia
Um mundo que desaparece
No ressuscitar do dia.
A nuvem nem me cumprimenta, arrepia
Caminho a direito sem S
Para onde eu não ia.
Fecho os meus olhos e vejo quem tanto erra
Na civilização, na montanha
No fogo da chama.
Sei tudo agora tão bem sob a húmida terra
Que a minha mão não apanha
No calor da cama.
E o cheiro é tão intenso neste doce relvado
Onde o sal não decora o chão
Para estar tudo na mesma.
E o murmúrio do coração aos céus é levado
E a chuva desce trazida pela mão;
Lá cai nova resma!
Magoei alguns por certo, entre as presentes dores
Pois que prossigam tontos a rir
Que vos seja habitual.
Agradeço as vossas lágrimas, obrigado por tantas flores
Souberam-me bem, mas vou dormir
Neste meu funeral.

terça-feira, outubro 04, 2011

Sorriso de Criança

No relento da noite

Somos o momento do dia

A lua que sorria sem saber

O tamanho do açoite.


 

E quantos olhos se quebram

À mão da dura epifania

Que batia e batia por querer

Impor leis talhadas em pedra.

    

Mas os vidros aqui são em dobro

E isso é-nos tão grande garantia

Que na casa pia ao lado se podem ter

As notícias dum papel salobro.


 

No silêncio das estrelas

Sofremos de crónica paralisia

Pelo que ria uma criança agora a morrer

Quando podíamos nós sê-las.

domingo, setembro 04, 2011

Noventa

Hoje devia estar contente. Uma enfermeira disse-me há pouco num tom jovial, ainda o sol madrugador batia outonal na minha janela, que neste dia, naquela precisa e exacta hora, eu acabara de cumprir 90 primaveras. Até se deu ao trabalho de decorar a parede branca que se debruça sobre mim com uma cartolina colorida para me “animar o dia”, palavras da pequena cujo nome se me escapa agora.
É boa moça, não posso negá-lo, sempre com um sorriso espontâneo, expressivo, tão real que enche o quarto à sua passagem, apesar da bata verde-horrível que enverga. Assenta-lhe na medida perfeita de um saco de batatas, ainda feito à moda antiga em serapilheira, mas a pobre coitada ou ignora-o ou simplesmente faz por isso. Acho que a Gertrudes, Hortência ou lá como se chama, já me falou sobre a sua bata por mais que uma vez, enquanto me ajeitava a almofada ou aconchegava a colcha, só que apenas retive o seu enorme sorriso, quase tão grande como as ancas onde se transporta.
Absorto nestes pensamentos e já um pouco surdo da idade, nem dei conta da chegada dos teus passos até mim. Vinhas linda como era habitual, numa combinação simples de saia e casaco, cujos tons branco e preto se enquadravam harmoniosamente no teu cabelo grisalho a cair sobre os ombros. Parecias uma “pin-up girl”, aquela que conseguira fisgar quase 60 anos atrás num inacreditável golpe de asa do destino.
Cruzámos o olhar por instantes e, ainda antes de dizeres o quer que fosse, desviei a atenção para a janela do quarto, contemplando o azul vazio do céu. Mesmo não vendo e já ouvindo mal, pressenti a tua boca a abrir e a fechar-se sem proferir uma palavra. Sabias a promessa em que pensava e o quanto me tinha esforçado por cumpri-la, mas o problema era o hoje, precisamente o hoje no qual, como uma lata de conserva, a promessa expirava o prazo. Nem eu acreditei que durasse até aqui…
- Na melhor das hipóteses, faltam-me 365 dias – disse, num tom pausado com os olhos humedecidos, aqueles que havia desviado de ti.
- Não sejas tonto! A promessa não era a sério, era uma brincadeira só nossa – cortaste a direito como era teu timbre.
- Eu sei disso, mas sinto dentro de mim que não vou conseguir superá-la.
- És tão idiota às vezes que até me irritas… Os médicos dizem que estás saudável, perfeito. Ainda há meses fizeste um check-up e nada!
- Estou saudável para alguém de 90 anos. Hoje em dia, quem chega a esta idade?… Quem? Para os médicos, estar saudável aos 90 é conseguir respirar sem máquinas.
- Tu… - e estilhaçaste os diques que sustinham as lágrimas inquietas dentro de ti .
- Vem até mim. Quero abraçar-te, por favor. Desculpa-me estar assim… - e também eu senti o extravasar das emoções a confundirem-se nas tuas. Que maldita promessa te fizera.
Éramos novos, eu de espírito e tu de idade, mas, apesar da década que nos separara ao nascimento, os nossos caminhos haviam-se misteriosamente cruzado graças à tecnologia a que agora, na nossa velhice, cada vez mais renunciamos. É espantoso como a juventude subestima o valor do palpável, vangloriando a essência do vazio que confundem com etéreo. Para te apaziguar o espírito em busca do amor eterno, prometi nessa época que poderias contar sempre comigo, que estaria do teu lado acontecesse o que acontecesse, mesmo quando os piores problemas de saúde te afligissem e ninguém quisesse cuidar de ti. Seria o teu porto de abrigo. Seria tudo por ti, como tu serias por mim, e duraria até aos 90, para fazer de ti uma octogenária feliz.
Até aos 90…
Nunca prometi nada para depois e bem que devia tê-lo feito em tempo útil, pois tenho um medo da Morte que é de morrer. Nem o facto de ver quase todos os meus amigos partir à minha frente me aliviou desse pânico inconsciente, pelo contrário, parece até que me relembrou sempre do que estava em jogo.
- Os nossos netos estão lá em baixo e trouxeram um bolo – soltaste por fim, já mais calma, quando afrouxaste o abraço.
- Vieram todos? – espantei-me sinceramente.
- Todinhos, até a Adriana que só tem 6 meses!
- Não me lembro dela… E onde ficaram instalados?
- Na nossa casa, claro. Devidamente aconchegados, couberam lá todos, tal como os nossos filhos, mais a nora e o genro. Bem, alguns dos pequenos pediram para acampar no jardim e ninguém se importou de vê-los tão felizes.
- Só faltava lá eu… – entristeci novamente.
- Nunca! Sabes bem que é impossível a família esquecer-te. Recordámos as tuas histórias ao jantar e o traquinas do Gaspar decidiu imitar as tuas gargalhadas o serão inteiro. Até caiu no chão de tanto rir! Como vês, mesmo quando não podes estar lá fisicamente, todos sentimos que estavas presente.
- Desculpa, meu amor.
- É claro que estás desculpado, tontinho… Eu só gostava de saber o que raio estavas tu a fazer em cima da cadeira antes de caíres e partires a anca!
- Se eu soubesse, dizia. Mas aposto que era algo de imprescindível!
- Ó sim, claro que era! Quando Vossa Excelência se põe com ideias de fazer bricolage é porque o assunto é seríssimo… – a ironia fica-te tão bem – Mas, descansa, que ninguém morre de uma anca partida, meu velhote!
- Não digas disparates, minha jovem de 80 anos, e chama lá toda a gente para cima. Tenho saudades deles… E tinha tantas saudades tuas!

sábado, setembro 03, 2011

Sebe desfeita

Eu vou cortar-te um braço
E tentar fingir que me esqueço
De vê-lo tão virado do avesso
Como se fosse nó de laço.

Eu vou tirar-te um rim
E filtrar por ele toda a prosa
Negro plúmbeo em vã glosa
Disparada pelo teu cetim.

Eu vou trincar-te a língua
Tão bífida, essa velha amiga
Livrá-la da retorcida intriga
Que rendilhava sempre ambígua.

Eu vou vazar-te a vista
Pintar nela o quadro escuro
Onde sepultavas o meu muro
Para a tua próxima conquista.

Eu vou cravar-te o coração
Espojá-lo do seu jardim secreto
Que em tempos contemplei de tão perto
Ditarei o fim à tua admiração.

E então serás perfeita
Qual boneca de porcelana
Em estado pleno de nirvana
Uma sebe desfeita.

sexta-feira, julho 22, 2011

A Grande Evasão

Os ponteiros marcam certeiros as horas que o coração desconhece enquanto percorro a casa. Será, talvez, a minha quinta ronda de vigilância às paredes nesta tarde, aos muros que me encerram na minha cidade dentro da selva urbana que a todos prende. Algumas pessoas até relatam friamente os horrores dessa prisão selvática, ouvi disso na televisão, enquanto outros, relembro nas conversas de há muito, juram-na confinada à jaula dos tigres no jardim zoológico, mas eu, em pleno endeusamento, vejo-o agora tão claramente que tenho de te avisar.

Vai para a rua.

(Eu bem quero, mas como?)

Após anos e anos passados a juntar na perfeição tijolos ao cimento, confinando-me sempre mais no carregado ar de chumbo, chegou hoje o dia em que, cruel destino, busco uma falha por onde possa sair, uma ínfima brecha neste tão magnífico altar que sozinho edifiquei, inquebrantável perante os medos que de fora viriam, numa tentativa vã de me proteger da sua devastação. Ironicamente, nunca me apercebi que a fonte do pânico seria outra, bem mais próxima e tão mais íntima, que as minhas próprias vísceras lhe são exteriores.

Sai de casa.

(Onde fechei a porta?)

Já consciente do erro cometido, dou agora voltas e voltas pela casa ao ritmo das entranhas indigestas, contorcendo-me sem igual enquanto reviro tudo à procura da porta por onde saíste e que te pedi que nunca mais abrisses. Cumpriste a tua parte mesmo sem me compreender, o que agradeço, e deixaste-me aqui enclausurado, inacessível ao mundo exterior, como jurei ser minha vontade. E foi, até hoje. Ou ontem, quando verti a primeira lágrima desconhecendo-lhe a origem. Ou anteontem, dia em que se me humedeceram os olhos. Talvez há um mês atrás, naquele raro acelerar do passo no corredor. Enfim, se recuar na memória, possivelmente desde há mais tempo…

Foge comigo.

(Saberei correr?)

Tanto quis a calma e a paz interior que construí teorias, fiz dissertações e até publiquei teses em jornais da especialidade sobre isso. Não duvides… Recebi convites para intervir em colóquios e seminários, os quais educadamente rejeitei, com receio de prejudicar a pacatez da minha vida, e tudo isto para quê? Para sentir um vento nas pernas, tanto anos depois, a impelir-me numa corrida? E, se há vento, donde virá? Por isso busco a fresta fina, louco por lhe conhecer a origem. Onde estás?

Foge! Já!

(Mas volto?)

Na minha cabeça plena de soberba, tijolos explodem à frente e atrás, aos lados, por todo o lado, num descarnar sem fim do betão armado que se esvai lentamente a meus pés, qual monstro espongiforme ainda lutando pela sua vida, e concede-se-me o acesso ao mundo exterior. A minha face rasga-se perante o esplendor da luz exterior (interior?) e, sem saber nem ver para onde, calcorreio a minha fuga.
A fuga...
Sim, fujo para nunca mais lá voltar.
Fujo para ti, de onde nunca devia ter saído.
Oh, sim, se fujo!... Fujo e encho o peito de ar para retomar naquela fuga …
É tão bom respirar, neste regresso à selva urbana da paixão e da dor, onde as pernas trôpegas rapidamente deixarão de sê-lo e ganharão feridas. Haverá chagas para somar e lamber, é um facto, mas delas brotará prazer e lágrimas de alegria, prazer e lágrimas de tristeza. Prazer por ser e por estar. Prazer por nunca mais voltar àquele lugar.

E foi assim que hoje fugi numa evasão que mais não é do que um reencontro com um velho amigo meu: Eu…

segunda-feira, junho 27, 2011

Humanos (parte 2)

Um dia caminharei sobre a água
Noutro farei nela minha final poção
Um dia olharei de longe a Terra
Para no outro ser eu o âmago da questão.
Um dia sussurrarei toda a mágoa
Noutro serei apanhado no turbilhão
Um dia me aquecerei junto ao fogo
Para no outro imolar a minha mão.
Um dia contemplarei do alto da serra
Noutro lançar-me-ei no ar em perdição
Um dia serei o nó de marinheiro
Para no outro quebrar toda a fundição.
Um dia serei a verdade cristalina
Noutro jogarei fora qualquer razão
Um dia serei eu quem ilumina
Para no outro percorrer a sombra da escuridão.