terça-feira, junho 26, 2012

As Lágrimas Que Nunca Te Chorei

A noite respirava alta quando abandonei mansamente as horas do teu fôlego relaxado. Contornei a cama de lençóis definidos pela beleza da tua pele e vagueei pela casa em busca do sítio onde a razão fizesse sentido, onde o coração fizesse sentido, onde a solidão fizesse sentido. Obviamente, na procura do impossível dentro de mim, não dei com esse local e foi num apelo maternal que rumei ao aconchego do sofá da sala, onde os dedos do seu tecido me afagaram, me acariciaram, me fizeram sentir a falta dos teus que tantas vezes por lá passaram.
Perdeste-los na espuma dos dias, entre vagas de informação avulsa, e ainda não sabias disso, da falta que te faziam, da falta que me faziam. Desejava tanto tê-los agora perto de mim, tomar-lhes o calor, cair no seu embalo e sossegar as minhas lágrimas neles, aquelas invisíveis e que, apesar disso, são tão mais sentidas, mais reais, mais vindas de dentro, um dentro tão fundo de que desconhecia a existência. E era assim que me sentia: nu, frágil, acossado por tempestades de areia feitas de grãos tão fortes quanto imaginários, e que ainda assim dilaceram, vergastam, me abandonam prostrado perante o altar de ti.
Peço clemência aos deuses, peço sossego e podia fazê-lo toda a noite, até cinco minutos antes do despertador te injectar de realidade e eu estar lá a proteger-te do choque, fingindo-me de forte, que não darias conta. Fingindo que não sinto, como se fosse eu o poeta de Pessoa a sentir toda a dor do mundo.
Pego num bloco de folhas soltas e pinto para a posteridade a noite que nunca viste das lágrimas que nunca te chorei. Real ou fruto da imaginação não interessa, mas talvez se eu ficar por aqui ninguém dê pela minha falta…

domingo, junho 17, 2012

Universos Paralelos

O espaço percorreu a maior dimensão do tempo e entrou noutro mundo, noutra galáxia, noutro universo, paralelo ao seu, próximo do seu, tão colado que quase lhe partilhava o perfume matinal que nos distingue nas agruras da vida e respirava a confiança dos holofotes da fama, da glória, da vanidade da vida.
Exausto, cansado de viver e fatigado por dores acéfalas, tomou como seu o copo de vinho que restava à mesa e aspirou num ápice os restos de comida ressequida que tingiam a mesa ainda vestida pelos remorsos de noites mal dormidas, pelas manchas do passado, pelas agonias do presente. O futuro, esse tresandava a trapos embebidos em vinho tinto, amontoados, amarrotados, abandonados ao seu triste destino da manhã de orvalho.
Deixou-se ficar um pouco mais, entretido nas suas recordações do diário de bordo de outrora, do registo de coordenadas na altura tão exactas, rigorosas, certeiras. Já não eram assim nos tempos de hoje. Haviam mudado a unidade métrica, as máquinas de viajar no tempo haviam-se tornado obsoletas, pedaços de vil metal flutuante, e o velho espaço, sem dar por isso, foi-se transformando num espaço ainda mais velho, mais arcaico, quase contemporâneo das viagens à lua.
Agora a lua era ele e, vendo-se reflectido nas nebulosas paredes cor de leite, sonhava com o que poderia ter sido se fosse fruto de outra metafísica, de outro apeadeiro de passagem. Talvez tivesse sido feliz. Talvez ainda o fosse por estes dias em que mal sentia. Talvez.
Limpou novo copo de vinho e olhou em redor com atenção. As paredes exibiam orgulhosas as rachas da idade e, entre uma ou outra fenda, lá estava pendurado um prato com fruta cristalizada desenhada no fundo. Que coincidência de fundos, pensou em voz alta, existe entre nós…
Levantou-se cambaleante e ergueu repetidamente o copo vazio de alegria. Sozinho, brindou à sinfonia da vida, ao paralelismo de estar e não estar, à presença figurativa da realidade paralela. Beijou a esposa e partiu.
Rumo a mais um dia de trabalho…