terça-feira, setembro 29, 2009

Família feliz

O esposo
em repouso
come o tremoço
e bebe uma imperial.

A esposa
não repousa
fica com a louça
e enverga avental.

O moço
sofre no osso
cargas de louco
p'ra ganhar algum sal.

A moça
nem se esforça
dá-lhe na coca
e anda no coiso e tal.

quarta-feira, setembro 23, 2009

...

Lá fora, um céu cor de chumbo anuncia o regresso a casa às filas de trânsito vespertinas e eu ainda nem saí. Passei todo o dia em cima da cama apática, olhando com ternura para a minha nova companheira de quarto, uma pequena mancha que se deitou na parede junto à mesinha de cabeceira. Deixa-me dormir um pouco, parecia dizer, que ontem tive um dia extenuante, mais logo falamos. E por ali ficou. E eu a olhar para ela.
Na marcha lenta das nuvens, acabei por entalhar na memória os contornos negros desta mancha da minha perdição, o seu tom esbatido, a sua forma acanhada, quase acocorada, o traço irregular que não esconde ainda assim uma gordurinha a definir-lhe o centro de gravidade, tudo humedecido por um olhar disperso
(ou será apenas meu reflexo?)
no vazio da alvura que me angustia perdidamente.
De tão abandonada no deserto de cor, aquela mancha poderia muito bem ser um ponto final num texto que ainda nada disse, matando à nascença todas as palavras que mudariam o mundo, ou um ponto de fuga num cenário impressionista que não chegou a romper das mãos do pintor. Mas não é. Talvez fosse antes a indicação da capital dum país sugado pelo mapa terrestre ou o sinal que rebenta nas peles mais claras
(deixei-te muito tempo ao sol?)
numa dúvida cancerígena que assola a mente. Mas não é. Até poderia ser aquele olho cavernoso que demente nos persegue pelas sombras e esquinas das estreitas vielas, mas não, não é – nem nunca será – nada disso. É apenas e só uma singela mancha sobre a qual
(pouco quero contar?)
pouco sei.
Minto.
Sei. Tudo a seu respeito, como nasceu e a que horas, quem a pincelou de negro no meu quarto branco para depois sair à pressa e até sei, veja-se só quanto sei!, qual o dia da sua morte. Anunciada. Ou melhor, encomendada por telemóvel, ainda o sol recortava os telhados, ao bigode do Sr. Luís, pintor profissional durante o dia e bêbado pela noite fora. Só 6.ª feira é que posso, respondeu-me.
Para não vê-la mais naquele desencanto próprio de alguém que tem os dias contados, decidi dar esta noite à minha mancha um sentido do tamanho da vida. Até ao fim da semana, já não andará perdida numa tela com janela, duvidando se é ponto ou sinal ou um espaço preenchido a mal, pois a seu lado vou rabiscar duas manchas iguais à original. Inseparáveis na vida e na morte, responderão pelo nome de reticências…

Flor do deserto

Nos caminhos do deserto
Nas estradas da areia e do pó
Sem ver ao longe, nem ao perto
Ou sequer enxergar o chilindró
Saltito, sem rumo certo,
Entre a raia do anti e do pró.

Alternam-se dias e noites
Sóis a pino e céus estrelados
Nem respiram, eternamente afoites
Na busca de trevos, Budas e dados
Que livrem a vida dos açoites
Das torreiras e dos frios gelados.

Anseio por chegar ao fim
Deste passeio que nada avista
Trocá-lo por oásis de indiano jasmim
Sem haver ilusão ou conquista
Apenas porque, enfim,
O amor nasceu sem quem o vista.

quinta-feira, setembro 03, 2009

Junto ao fosso do castelo

Posso não ter ouro, prata ou jóias
nem vastos terrenos ou castelos
mas te asseguro, minha princesa
apresentar a esses olhos mais belos
um novo reino onde todos os dias
a alegria nasce e morre a tristeza!

Fim da canção

Meu amor, temo a verdade
Temo pelo que fará em nós
Vislumbrar a mim e a ti
Sem saber que será da nossa voz...