sábado, janeiro 21, 2012

Passos perdidos

A manhã fugia à minha frente mais ágil do que os teus passos encontravam os meus. Não sei donde lhe vinha tamanha pressa, tamanha avidez de chegar... Lá... E depois partir correndo num ápice à procura de novo destino. Mas era assim que era e eu só lhe seguia o compasso, ou tentava, o melhor que podia.

Sempre em frente, dizia ela, sempre à frente, via-a eu, e eu no encalço de sempre e tu linda, como sempre, e eu sem dizer nada... Não te dirigia uma palavra que fosse. Tudo como foi, como era, como tinha de ser. E eu tinha de ser aquilo que não queria. Que não querias. Que não querias, mas não tinhas a coragem de dizer. Preferias correr atrás de mim silenciosa, e eu atrás da manhã que se afastava sempre, a teres de desunir por um instante
(por uma breve e singela suspensão etérea dos grãos de areia)
a graciosidade dos lábios onde sabias que perderia os passos. Aqueles de que me queixava já não bastarem para o ritmo da manhã, enquanto alargava a passada...

O coração acelerava e doía só de pensar que poderias caminhar atrás de mim, como uma sombra, uma sombra de luz, um espaço ocupado por tudo quanto é claridade, brilho e leveza elevada aos céus, para lá dos céus e além do que a imaginação alcança. Assim eras tu... Assim sonhara um dia ser eu. Poder seguir os teus passos sem mácula ou decepção. Ao invés, enfiei-me numa espiral descendente a caminho de algo cujo fim desconhecia e arrastei-te comigo. Todas as manhãs, punha-me a pé antes da manhã acordar e fugia porta fora sem olhar a graciosidade dos teus lábios, sem perder os meus passos por lá, poupando-os para outro sítio qualquer. Tinha de ser assim, convencera-me com a firmeza crescente dos anos, qual âncora a julgar que segura para sempre o navio. Todos os dias, tinha de te abandonar em casa, de te enganar os passos, trocar as voltas para ser essa âncora de ti, dançar o chachacha se fosse preciso, mas não como antigamente, quando o fazíamos a dois, lembras-te?

Enchíamos a sala sem pedir licença, cobrindo em sucessivas combinações rítmicas o soalho de madeira gasto pela usura e pelos corações que, antes dos nossos, por lá dançaram na cadência das colunas de som então lustrosas. Tempos em que os anjos desciam à terra para assistirem ao nosso compasso de esperança, para te verem, qual seu par, a abrilhantares o soalho de madeira baço que os nossos passos preenchiam. Tempos em que...

Bolas! Por pouco, perdia os meus passos ao recordar os nossos e isso, era certo, não podia acontecer. Não hoje pelo menos, que não tinha tempo para dançar contigo... Talvez no próximo fim-de-semana ou, vá, no próximo mês.

- Bernardete, vê quando tenho uma tarde livre nos próximos tempos, por favor... Sim, inclui sábados, domingos e feriados na pesquisa.

Dançávamos sempre de tarde, a caminho do seu fim para ser mais preciso, quando o sol começava a fazer de nós mais do que éramos numa sombra escura, que todos temos menos tu. Já me imaginava a regressar a esse saudoso instante, a essa reticência do tempo e do espaço presa em casca de noz, rendido à perdição dos teus lábios desunidos pelos meus, à graciosidade dos corpos que levitam sem tocar nunca o soalho consumido pela música, pela alegria, pela loucura consciente do amor pueril, por nós, bolas!, por nós que tanto o fatigámos e éramos tão bons nisso...

- Doutor, tem a agenda preenchida para os próximos cinco anos. Deseja que desmarque alguma coisa?

Sim, quero! Sim! Sim! Sim! Como posso não querer? Risca tudo, rasga a agenda, quero lá saber, desmarca-te dos passos perdidos da manhã e vê o sol, os anjos, os lábios, sempre os lábios e sempre tu a sorrires neles, mais leve que o ar.

- Obrigado, Bernardete, mas deixe estar. Se é assim que tem de ser...