Poeta do Ar...
... exprime-se na terra do nunca.
segunda-feira, março 10, 2014
segunda-feira, novembro 19, 2012
O Beijo
Estávamos tão perto de ser o que em criança sonháramos, de
alcançar a inolvidável fantasia de viver num mundo de príncipes e princesas,
que permanecemos por ali mesmo, à distância de um beijo, de um tão singelo e avassalador
unir dos lábios, numa espera pelo tempo certo e o tempo à nossa espera. Incerto.
Sentíamos a nossa respiração cálida a fundir-se numa só, húmida e quente, tórrida e selvagem, ofegante e tão sensualmente próxima, a ponto de nos despertar o arrepio que suspendia a fala. O teu sorriso em V mexeu-se um pouco, buscou o meu no espaço estratosférico em que nos movíamos sem sair do lugar. Suplicava, mesmo sufocado nas palavras que não se dissolviam, pelo selar do destino que nos havia escapado tempo demais, desde o início da idade adulta até hoje, até ao preciso instante em que nos afrouxáramos de um longo abraço e visto como se fosse a primeira vez – estás linda!… Ou a última, não tenho a certeza.
Não tenho a certeza de nada no meio deste turbilhão de emoções, mais pareço uma criança perdida na fúria da multidão. Parecemos duas crianças perdidas, dizia o teu olhar a olhar para mim, sem saber onde se fixar, onde fitar, a desprender-me e a agarrar-me repetidamente, ora longe, ora perto, ora inseguro, ora resoluto do que queria...
Mais de uma década havia passado para chegarmos até aqui, às ruas perdidas do bairro, e era curioso assistir que, embora envelhecidos em toneis de madeira, mais refinados que nunca em assuntos do coração, tão apurados pelas escolhas dos nossos rumos passados, havíamos de súbito recuado ao tempo de jovens imaturos. Tremíamos muito, sorríamos muito, muito, mas não avançávamos nada, nada, nada. Nem tão pouco nos largávamos. Era o medo de errar a tomar conta de nós quando antes jurávamos intimamente saber tão bem o que queríamos…
Ao meu coração, que tu sempre foras mais contida no uso da língua camoniana, eram conhecidas duas épocas bem distintas: A.C. e D.C.. Antes de te Conhecer e Depois de te Conhecer ou, como eu te costumava dizer em sotaque brasileiro, numa brincadeira só nossa, Antes de Cê e de Depois de Cê. E sorríamos largamente, a pensar no que pôderia sê…
Pois agora, mais do que poderia, podia mesmo sê. Estava ali, à nossa frente, em pose desafiante. E nós ali estávamos, abraçados, cercados por pessoas atarefadas a caminho de casa que mal víamos passar, o final da tarde a marcar o passo acelerado às horas e nós suspensos no tempo, na palavra, quase até na respiração. A tua expiração era a minha inspiração, como aliás sempre o foras, ó tágide...
E os carros a passar, ruidosos, e tu e eu ali, sem avançar, como se fossemos o trânsito ao pôr-do-sol. Sem avançar, mas desejosos de chegar a casa. Nós como eles, eles como nós. Eles a olhar para nós, a observarem-nos naquele abraço sem fim, até o semáforo indiscreto os tirar dali. A casa que mora nos teus lábios a chamar-me, mansamente, como uma lareira a crepitar na noite invernosa. Era uma casa pintada no meio da neve cristalina da tua tez, de contornos tão suaves como os flocos com que foras pincelada.
Tens a certeza disto?, entrecortaste o ar quente da neve em que me perdia. Depois não poderemos fingir que hoje não se passou, que o ano não teve hoje. Que teve ontem e terá amanhã, mas não hoje.
Eu não tinha a certeza, como podia? Havia sonhado dias, meses, anos a fio com aquele momento e agora sentia –lhes o peso a cair denso sobre mim. Desejava-te numa ascensão celestial a este instante mas, de tanto querer, de tanto querermos, o céu abatera-se sobre nós. Até parecia uma parvoíce, mas o que é o amor senão a maior das parvoíces, entregar –nos por inteiro a troco de promessas, de palavras, de ventos, de sussurros…
É a maior, mas também a mais doce e tu, gulosa, fechaste os olhos sem aguardar resposta. Eu segui-te nesse impulso. Respirámos fundo uma, duas, três vezes… A ganhar a calma, a ganhar o fôlego antes de mergulharmos num mar de sentidos despertos, os lábios humedecidos à nossa espera, os braços a puxarem-nos para tão próximo que o teu peito arquejava o meu, sentia-lhe o volume palpitante, a língua humedeceu os lábios por uma última vez e…
Sentíamos a nossa respiração cálida a fundir-se numa só, húmida e quente, tórrida e selvagem, ofegante e tão sensualmente próxima, a ponto de nos despertar o arrepio que suspendia a fala. O teu sorriso em V mexeu-se um pouco, buscou o meu no espaço estratosférico em que nos movíamos sem sair do lugar. Suplicava, mesmo sufocado nas palavras que não se dissolviam, pelo selar do destino que nos havia escapado tempo demais, desde o início da idade adulta até hoje, até ao preciso instante em que nos afrouxáramos de um longo abraço e visto como se fosse a primeira vez – estás linda!… Ou a última, não tenho a certeza.
Não tenho a certeza de nada no meio deste turbilhão de emoções, mais pareço uma criança perdida na fúria da multidão. Parecemos duas crianças perdidas, dizia o teu olhar a olhar para mim, sem saber onde se fixar, onde fitar, a desprender-me e a agarrar-me repetidamente, ora longe, ora perto, ora inseguro, ora resoluto do que queria...
Mais de uma década havia passado para chegarmos até aqui, às ruas perdidas do bairro, e era curioso assistir que, embora envelhecidos em toneis de madeira, mais refinados que nunca em assuntos do coração, tão apurados pelas escolhas dos nossos rumos passados, havíamos de súbito recuado ao tempo de jovens imaturos. Tremíamos muito, sorríamos muito, muito, mas não avançávamos nada, nada, nada. Nem tão pouco nos largávamos. Era o medo de errar a tomar conta de nós quando antes jurávamos intimamente saber tão bem o que queríamos…
Ao meu coração, que tu sempre foras mais contida no uso da língua camoniana, eram conhecidas duas épocas bem distintas: A.C. e D.C.. Antes de te Conhecer e Depois de te Conhecer ou, como eu te costumava dizer em sotaque brasileiro, numa brincadeira só nossa, Antes de Cê e de Depois de Cê. E sorríamos largamente, a pensar no que pôderia sê…
Pois agora, mais do que poderia, podia mesmo sê. Estava ali, à nossa frente, em pose desafiante. E nós ali estávamos, abraçados, cercados por pessoas atarefadas a caminho de casa que mal víamos passar, o final da tarde a marcar o passo acelerado às horas e nós suspensos no tempo, na palavra, quase até na respiração. A tua expiração era a minha inspiração, como aliás sempre o foras, ó tágide...
E os carros a passar, ruidosos, e tu e eu ali, sem avançar, como se fossemos o trânsito ao pôr-do-sol. Sem avançar, mas desejosos de chegar a casa. Nós como eles, eles como nós. Eles a olhar para nós, a observarem-nos naquele abraço sem fim, até o semáforo indiscreto os tirar dali. A casa que mora nos teus lábios a chamar-me, mansamente, como uma lareira a crepitar na noite invernosa. Era uma casa pintada no meio da neve cristalina da tua tez, de contornos tão suaves como os flocos com que foras pincelada.
Tens a certeza disto?, entrecortaste o ar quente da neve em que me perdia. Depois não poderemos fingir que hoje não se passou, que o ano não teve hoje. Que teve ontem e terá amanhã, mas não hoje.
Eu não tinha a certeza, como podia? Havia sonhado dias, meses, anos a fio com aquele momento e agora sentia –lhes o peso a cair denso sobre mim. Desejava-te numa ascensão celestial a este instante mas, de tanto querer, de tanto querermos, o céu abatera-se sobre nós. Até parecia uma parvoíce, mas o que é o amor senão a maior das parvoíces, entregar –nos por inteiro a troco de promessas, de palavras, de ventos, de sussurros…
É a maior, mas também a mais doce e tu, gulosa, fechaste os olhos sem aguardar resposta. Eu segui-te nesse impulso. Respirámos fundo uma, duas, três vezes… A ganhar a calma, a ganhar o fôlego antes de mergulharmos num mar de sentidos despertos, os lábios humedecidos à nossa espera, os braços a puxarem-nos para tão próximo que o teu peito arquejava o meu, sentia-lhe o volume palpitante, a língua humedeceu os lábios por uma última vez e…
domingo, outubro 21, 2012
No ventre da terra
O
cheiro fresco a relva cortada amarrava-nos ao chão donde não queríamos sair,
disse-te eu, “donde nunca sairemos” corrigiste tu. Anuí, sem mexer os lábios.
A tua mão
pousada na minha, ambas a sentir a relva húmida, era a nossa única ligação
física, mas o que não se via por fora era tão mais intenso por dentro. Havia
tanto de divino naquele toque que nenhum de nós se atrevia a perturbar o
silêncio, por recear que as palavras trouxessem o dia-a-dia de volta em todas
as suas tropelias.
Éramos só nós
num momento como há muito não tínhamos, por força dos filhos, do trabalho, do
trânsito, das rotinas, enfim, da vida, e as nossas mãos unidas sobre o ventre
da terra, como um dia chamaste ao jardim que morava nas traseiras da nossa
casa, davam-nos toda a paz do mundo.
Sabes o que me
apetecia agora? – arriscaste tu dizer, numa voz tão harmoniosa que por momentos
julguei trazida de longe pela brisa, embrulhada nalguma onda da praia que se
ouvia distante.
Abri os olhos
e virei-me para ti. Os teus permaneciam fechados, mas só aparentavam. Eles viam
bem mais que os meus, sempre mais além e com maior perspicácia. Olhei em redor,
à procura de resposta para dar, e nesse caminho percorri todo o jardim e até
aquele pequeno canteiro junto à porta das traseiras. Como estava frondoso o
nosso ventre da terra, donde nasciam pigmentos amarelos, rosas, azuis e
vermelhos, numa explosão de cor que só a Primavera nos podia dar. Que deleite…
Um impulso
quase me tirou do chão para te trazer uma flor do canteiro! Mas não, não podia
ser isso. Não podia soltar-te a mão naquele momento, nem que fosse uma flor o
fruto do teu desejo. Desculpa, mas não…
Aproximei-me
então de ti, pouco a pouco, quase a pedir licença ao mundo para fazer o menor
ruído possível e com isso afastar as nuvens brancas que salpicavam o céu lá no
alto. Debrucei-me, como fazia antigamente todos os dias e agora já não tanto
quanto desejávamos, e sustive a respiração…
Estavas tão
linda, com o sol a reflectir em ti o brilho que transportavas no coração e que
me conquistara desde o início. Graças a ele tornara-me escritor e, sobretudo,
imensamente feliz.
Desconfiava
que em ti eu devia ter tido o mesmo efeito, mas sempre te conhecera assim,
radiante, e perdia-me por falta de ponto de comparação. A tua resposta nunca
mudava “Claro que fui assim toda a minha vida! Achas que melhorava tanto por
tua causa? Ó Deus, saíste-me cá um convencido de primeira…” E depois rias
preenchendo o espaço em redor com a tua felicidade. E eu contigo…
Perdíamos
tempos nisto, à conta duma frase que vinha da nossa juventude e que, apesar
disso, nunca perdera a graça. Como nós. Não que fosse verdade, acreditava eu,
mas tu nunca desfazias totalmente o mistério do teu brilho.
Num último
instante, com a respiração a acelerar e os nossos lábios prestes a mergulharem em
ondas de calor, soltaste um “Não é nada disso, tonto! Apetece-me um copo de
água fresca! Ao fim de tantos anos ainda não sabes que este sol e esta brisa me
dão sede?”
Arregalei os
olhos, os teus ainda fechados, o teu rosto indecifrável a ocupar-te a face (como
só a mim o conseguias fazer, olha que sorte!) e eu sem saber bem o que pensar.
Ganhei força
no chão para me erguer mas, assim que o fiz, tu apanhaste-me e puxaste-me para
ti sem hesitação. Os teus lábios prenderam-se aos meus e arrebataram-lhes o ar.
Como tinha saudades deste doce sufoco, deste bater de asas sem sair do lugar…
Quanto tempo
assim ficámos? Quantas nuvens passaram? Quantos beijos trocámos? Ninguém sabe e
nós não tivemos tempo para contar…
terça-feira, junho 26, 2012
As Lágrimas Que Nunca Te Chorei
A noite respirava alta quando abandonei mansamente as horas
do teu fôlego relaxado. Contornei a cama de lençóis definidos pela beleza da
tua pele e vagueei pela casa em busca do sítio onde a razão fizesse sentido,
onde o coração fizesse sentido, onde a solidão fizesse sentido. Obviamente, na
procura do impossível dentro de mim, não dei com esse local e foi num apelo
maternal que rumei ao aconchego do sofá da sala, onde os dedos do seu tecido me
afagaram, me acariciaram, me fizeram sentir a falta dos teus que tantas vezes
por lá passaram.
Perdeste-los na espuma dos dias, entre vagas de informação
avulsa, e ainda não sabias disso, da falta que te faziam, da falta que me
faziam. Desejava tanto tê-los agora perto de mim, tomar-lhes o calor, cair no
seu embalo e sossegar as minhas lágrimas neles, aquelas invisíveis e que,
apesar disso, são tão mais sentidas, mais reais, mais vindas de dentro, um
dentro tão fundo de que desconhecia a existência. E era assim que me sentia: nu,
frágil, acossado por tempestades de areia feitas de grãos tão fortes quanto
imaginários, e que ainda assim dilaceram, vergastam, me abandonam prostrado
perante o altar de ti.
Peço clemência aos deuses, peço sossego e podia fazê-lo toda
a noite, até cinco minutos antes do despertador te injectar de realidade e eu
estar lá a proteger-te do choque, fingindo-me de forte, que não darias conta. Fingindo
que não sinto, como se fosse eu o poeta de Pessoa a sentir toda a dor do mundo.
Pego num bloco de folhas soltas e pinto para a posteridade a
noite que nunca viste das lágrimas que nunca te chorei. Real ou fruto da
imaginação não interessa, mas talvez se eu ficar por aqui ninguém dê pela minha
falta…
domingo, junho 17, 2012
Universos Paralelos
O espaço percorreu a maior dimensão do tempo e entrou noutro
mundo, noutra galáxia, noutro universo, paralelo ao seu, próximo do seu, tão
colado que quase lhe partilhava o perfume matinal que nos distingue nas agruras
da vida e respirava a confiança dos holofotes da fama, da glória, da vanidade
da vida.
Exausto, cansado de viver e fatigado por dores acéfalas, tomou
como seu o copo de vinho que restava à mesa e aspirou num ápice os restos de comida
ressequida que tingiam a mesa ainda vestida pelos remorsos de noites mal
dormidas, pelas manchas do passado, pelas agonias do presente. O futuro, esse
tresandava a trapos embebidos em vinho tinto, amontoados, amarrotados, abandonados
ao seu triste destino da manhã de orvalho.
Deixou-se ficar um pouco mais, entretido nas suas
recordações do diário de bordo de outrora, do registo de coordenadas na altura
tão exactas, rigorosas, certeiras. Já não eram assim nos tempos de hoje. Haviam
mudado a unidade métrica, as máquinas de viajar no tempo haviam-se tornado
obsoletas, pedaços de vil metal flutuante, e o velho espaço, sem dar por isso,
foi-se transformando num espaço ainda mais velho, mais arcaico, quase contemporâneo
das viagens à lua.
Agora a lua era ele e, vendo-se reflectido nas nebulosas paredes
cor de leite, sonhava com o que poderia ter sido se fosse fruto de outra
metafísica, de outro apeadeiro de passagem. Talvez tivesse sido feliz. Talvez ainda
o fosse por estes dias em que mal sentia. Talvez.
Limpou novo copo de vinho e olhou em redor com atenção. As paredes
exibiam orgulhosas as rachas da idade e, entre uma ou outra fenda, lá estava
pendurado um prato com fruta cristalizada desenhada no fundo. Que coincidência
de fundos, pensou em voz alta, existe entre nós…
Levantou-se cambaleante e ergueu repetidamente o copo vazio
de alegria. Sozinho, brindou à sinfonia da vida, ao paralelismo de estar e não
estar, à presença figurativa da realidade paralela. Beijou a esposa e partiu.
Rumo a mais um dia de trabalho…
sexta-feira, fevereiro 03, 2012
sábado, janeiro 21, 2012
Passos perdidos
A manhã fugia à minha frente mais ágil do que os teus passos encontravam os meus. Não sei donde lhe vinha tamanha pressa, tamanha avidez de chegar... Lá... E depois partir correndo num ápice à procura de novo destino. Mas era assim que era e eu só lhe seguia o compasso, ou tentava, o melhor que podia.
Sempre em frente, dizia ela, sempre à frente, via-a eu, e eu no encalço de sempre e tu linda, como sempre, e eu sem dizer nada... Não te dirigia uma palavra que fosse. Tudo como foi, como era, como tinha de ser. E eu tinha de ser aquilo que não queria. Que não querias. Que não querias, mas não tinhas a coragem de dizer. Preferias correr atrás de mim silenciosa, e eu atrás da manhã que se afastava sempre, a teres de desunir por um instante
(por uma breve e singela suspensão etérea dos grãos de areia)
a graciosidade dos lábios onde sabias que perderia os passos. Aqueles de que me queixava já não bastarem para o ritmo da manhã, enquanto alargava a passada...
O coração acelerava e doía só de pensar que poderias caminhar atrás de mim, como uma sombra, uma sombra de luz, um espaço ocupado por tudo quanto é claridade, brilho e leveza elevada aos céus, para lá dos céus e além do que a imaginação alcança. Assim eras tu... Assim sonhara um dia ser eu. Poder seguir os teus passos sem mácula ou decepção. Ao invés, enfiei-me numa espiral descendente a caminho de algo cujo fim desconhecia e arrastei-te comigo. Todas as manhãs, punha-me a pé antes da manhã acordar e fugia porta fora sem olhar a graciosidade dos teus lábios, sem perder os meus passos por lá, poupando-os para outro sítio qualquer. Tinha de ser assim, convencera-me com a firmeza crescente dos anos, qual âncora a julgar que segura para sempre o navio. Todos os dias, tinha de te abandonar em casa, de te enganar os passos, trocar as voltas para ser essa âncora de ti, dançar o chachacha se fosse preciso, mas não como antigamente, quando o fazíamos a dois, lembras-te?
Enchíamos a sala sem pedir licença, cobrindo em sucessivas combinações rítmicas o soalho de madeira gasto pela usura e pelos corações que, antes dos nossos, por lá dançaram na cadência das colunas de som então lustrosas. Tempos em que os anjos desciam à terra para assistirem ao nosso compasso de esperança, para te verem, qual seu par, a abrilhantares o soalho de madeira baço que os nossos passos preenchiam. Tempos em que...
Bolas! Por pouco, perdia os meus passos ao recordar os nossos e isso, era certo, não podia acontecer. Não hoje pelo menos, que não tinha tempo para dançar contigo... Talvez no próximo fim-de-semana ou, vá, no próximo mês.
- Bernardete, vê quando tenho uma tarde livre nos próximos tempos, por favor... Sim, inclui sábados, domingos e feriados na pesquisa.
Dançávamos sempre de tarde, a caminho do seu fim para ser mais preciso, quando o sol começava a fazer de nós mais do que éramos numa sombra escura, que todos temos menos tu. Já me imaginava a regressar a esse saudoso instante, a essa reticência do tempo e do espaço presa em casca de noz, rendido à perdição dos teus lábios desunidos pelos meus, à graciosidade dos corpos que levitam sem tocar nunca o soalho consumido pela música, pela alegria, pela loucura consciente do amor pueril, por nós, bolas!, por nós que tanto o fatigámos e éramos tão bons nisso...
- Doutor, tem a agenda preenchida para os próximos cinco anos. Deseja que desmarque alguma coisa?
Sim, quero! Sim! Sim! Sim! Como posso não querer? Risca tudo, rasga a agenda, quero lá saber, desmarca-te dos passos perdidos da manhã e vê o sol, os anjos, os lábios, sempre os lábios e sempre tu a sorrires neles, mais leve que o ar.
- Obrigado, Bernardete, mas deixe estar. Se é assim que tem de ser...
Sempre em frente, dizia ela, sempre à frente, via-a eu, e eu no encalço de sempre e tu linda, como sempre, e eu sem dizer nada... Não te dirigia uma palavra que fosse. Tudo como foi, como era, como tinha de ser. E eu tinha de ser aquilo que não queria. Que não querias. Que não querias, mas não tinhas a coragem de dizer. Preferias correr atrás de mim silenciosa, e eu atrás da manhã que se afastava sempre, a teres de desunir por um instante
(por uma breve e singela suspensão etérea dos grãos de areia)
a graciosidade dos lábios onde sabias que perderia os passos. Aqueles de que me queixava já não bastarem para o ritmo da manhã, enquanto alargava a passada...
O coração acelerava e doía só de pensar que poderias caminhar atrás de mim, como uma sombra, uma sombra de luz, um espaço ocupado por tudo quanto é claridade, brilho e leveza elevada aos céus, para lá dos céus e além do que a imaginação alcança. Assim eras tu... Assim sonhara um dia ser eu. Poder seguir os teus passos sem mácula ou decepção. Ao invés, enfiei-me numa espiral descendente a caminho de algo cujo fim desconhecia e arrastei-te comigo. Todas as manhãs, punha-me a pé antes da manhã acordar e fugia porta fora sem olhar a graciosidade dos teus lábios, sem perder os meus passos por lá, poupando-os para outro sítio qualquer. Tinha de ser assim, convencera-me com a firmeza crescente dos anos, qual âncora a julgar que segura para sempre o navio. Todos os dias, tinha de te abandonar em casa, de te enganar os passos, trocar as voltas para ser essa âncora de ti, dançar o chachacha se fosse preciso, mas não como antigamente, quando o fazíamos a dois, lembras-te?
Enchíamos a sala sem pedir licença, cobrindo em sucessivas combinações rítmicas o soalho de madeira gasto pela usura e pelos corações que, antes dos nossos, por lá dançaram na cadência das colunas de som então lustrosas. Tempos em que os anjos desciam à terra para assistirem ao nosso compasso de esperança, para te verem, qual seu par, a abrilhantares o soalho de madeira baço que os nossos passos preenchiam. Tempos em que...
Bolas! Por pouco, perdia os meus passos ao recordar os nossos e isso, era certo, não podia acontecer. Não hoje pelo menos, que não tinha tempo para dançar contigo... Talvez no próximo fim-de-semana ou, vá, no próximo mês.
- Bernardete, vê quando tenho uma tarde livre nos próximos tempos, por favor... Sim, inclui sábados, domingos e feriados na pesquisa.
Dançávamos sempre de tarde, a caminho do seu fim para ser mais preciso, quando o sol começava a fazer de nós mais do que éramos numa sombra escura, que todos temos menos tu. Já me imaginava a regressar a esse saudoso instante, a essa reticência do tempo e do espaço presa em casca de noz, rendido à perdição dos teus lábios desunidos pelos meus, à graciosidade dos corpos que levitam sem tocar nunca o soalho consumido pela música, pela alegria, pela loucura consciente do amor pueril, por nós, bolas!, por nós que tanto o fatigámos e éramos tão bons nisso...
- Doutor, tem a agenda preenchida para os próximos cinco anos. Deseja que desmarque alguma coisa?
Sim, quero! Sim! Sim! Sim! Como posso não querer? Risca tudo, rasga a agenda, quero lá saber, desmarca-te dos passos perdidos da manhã e vê o sol, os anjos, os lábios, sempre os lábios e sempre tu a sorrires neles, mais leve que o ar.
- Obrigado, Bernardete, mas deixe estar. Se é assim que tem de ser...
segunda-feira, dezembro 19, 2011
Último sopro
E se um dia partisse
Numa viagem às arrecuas
E se me dissesses agora
As sílabas que não desnuas?
E se fosses tu embora
Sem tentar sorrir de novo
E se lutasses um pouco
No ringue onde me comovo?
E se eu estivesse mouco
Querias-te afónica de tanto gritar
E se o sim fosse mel
Que não te custasse pronunciar?
E se a tua na minha pele
Pudesse ser doce realidade
E se o sonho dos deuses
Fosse maior que toda a idade?
E se eu te visse feliz
E se o pudesses apalpar
E soubesses o quanto quis
Nunca sair pelo ar.
Última finta, último sopro…
Numa viagem às arrecuas
E se me dissesses agora
As sílabas que não desnuas?
E se fosses tu embora
Sem tentar sorrir de novo
E se lutasses um pouco
No ringue onde me comovo?
Querias-te afónica de tanto gritar
E se o sim fosse mel
Que não te custasse pronunciar?
Pudesse ser doce realidade
E se o sonho dos deuses
Fosse maior que toda a idade?
E se o pudesses apalpar
E soubesses o quanto quis
Nunca sair pelo ar.
terça-feira, novembro 01, 2011
Um poema que fica
Entre duas janelas que vigiam,
Há um sonho que fica e a constelação que se agita
Num longo serão.
Entre duas taças que tilintam,
Uma lareira crepita e bafeja a luz que liga
Dois corpos em ilusão.
Entre dois cadeirões que dançam,
Sai uma música antiga e até o ar se revira
Nas costas da paixão.
Entre dois suspiros que pairam,
Perde o cuco a mira e nada os avisa
Da continuação.
Entre dois beijos que avançam,
O tempo eterniza aquela simples faísca
No nosso coração.
Lá fora, duas ondas passam
E um poema fica.
Há um sonho que fica e a constelação que se agita
Num longo serão.
Entre duas taças que tilintam,
Uma lareira crepita e bafeja a luz que liga
Dois corpos em ilusão.
Entre dois cadeirões que dançam,
Sai uma música antiga e até o ar se revira
Nas costas da paixão.
Entre dois suspiros que pairam,
Perde o cuco a mira e nada os avisa
Da continuação.
Entre dois beijos que avançam,
O tempo eterniza aquela simples faísca
No nosso coração.
Lá fora, duas ondas passam
E um poema fica.
sábado, outubro 29, 2011
Papel de prata
Exausto, o fim do dia chegou até mim e enrolámo-nos numa interminável noite de carícias.
Ela era o meu fim.
Estes eram os nossos dias.
Ela era o meu fim.
Estes eram os nossos dias.
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