segunda-feira, novembro 19, 2012

O Beijo

Estávamos tão perto de ser o que em criança sonháramos, de alcançar a inolvidável fantasia de viver num mundo de príncipes e princesas, que permanecemos por ali mesmo, à distância de um beijo, de um tão singelo e avassalador unir dos lábios, numa espera pelo tempo certo e o tempo à nossa espera. Incerto.
Sentíamos a nossa respiração cálida a fundir-se numa só, húmida e quente, tórrida e selvagem, ofegante e tão sensualmente próxima, a ponto de nos despertar o arrepio que suspendia a fala. O teu sorriso em V mexeu-se um pouco, buscou o meu no espaço estratosférico em que nos movíamos sem sair do lugar. Suplicava, mesmo sufocado nas palavras que não se dissolviam, pelo selar do destino que nos havia escapado tempo demais, desde o início da idade adulta até hoje, até ao preciso instante em que nos afrouxáramos de um longo abraço e visto como se fosse a primeira vez – estás linda!… Ou a última, não tenho a certeza.
Não tenho a certeza de nada no meio deste turbilhão de emoções, mais pareço uma criança perdida na fúria da multidão. Parecemos duas crianças perdidas, dizia o teu olhar a olhar para mim, sem saber onde se fixar, onde fitar, a desprender-me e a agarrar-me repetidamente, ora longe, ora perto, ora inseguro, ora resoluto do que queria...
Mais de uma década havia passado para chegarmos até aqui, às ruas perdidas do bairro, e era curioso assistir que, embora envelhecidos em toneis de madeira, mais refinados que nunca em assuntos do coração, tão apurados pelas escolhas dos nossos rumos passados, havíamos de súbito recuado ao tempo de jovens imaturos. Tremíamos muito, sorríamos muito, muito, mas não avançávamos nada, nada, nada. Nem tão pouco nos largávamos. Era o medo de errar a tomar conta de nós quando antes jurávamos intimamente saber tão bem o que queríamos…
Ao meu coração, que tu sempre foras mais contida no uso da língua camoniana, eram conhecidas duas épocas bem distintas: A.C. e D.C.. Antes de te Conhecer e Depois de te Conhecer ou, como eu te costumava dizer em sotaque brasileiro, numa brincadeira só nossa, Antes de Cê e de Depois de Cê. E sorríamos largamente, a pensar no que pôderia sê
Pois agora, mais do que poderia, podia mesmo . Estava ali, à nossa frente, em pose desafiante. E nós ali estávamos, abraçados, cercados por pessoas atarefadas a caminho de casa que mal víamos passar, o final da tarde a marcar o passo acelerado às horas e nós suspensos no tempo, na palavra, quase até na respiração. A tua expiração era a minha inspiração, como aliás sempre o foras, ó tágide...
E os carros a passar, ruidosos, e tu e eu ali, sem avançar, como se fossemos o trânsito ao pôr-do-sol. Sem avançar, mas desejosos de chegar a casa. Nós como eles, eles como nós. Eles a olhar para nós, a observarem-nos naquele abraço sem fim, até o semáforo indiscreto os tirar dali. A casa que mora nos teus lábios a chamar-me, mansamente, como uma lareira a crepitar na noite invernosa. Era uma casa pintada no meio da neve cristalina da tua tez, de contornos tão suaves como os flocos com que foras pincelada.
Tens a certeza disto?, entrecortaste o ar quente da neve em que me perdia. Depois não poderemos fingir que hoje não se passou, que o ano não teve hoje. Que teve ontem e terá amanhã, mas não hoje.
Eu não tinha a certeza, como podia? Havia sonhado dias, meses, anos a fio com aquele momento e agora sentia –lhes o peso a cair denso sobre mim. Desejava-te numa ascensão celestial a este instante mas, de tanto querer, de tanto querermos, o céu abatera-se sobre nós. Até parecia uma parvoíce, mas o que é o amor senão a maior das parvoíces, entregar –nos por inteiro a troco de promessas, de palavras, de ventos, de sussurros…
É a maior, mas também a mais doce e tu, gulosa, fechaste os olhos sem aguardar resposta. Eu segui-te nesse impulso. Respirámos fundo uma, duas, três vezes… A ganhar a calma, a ganhar o fôlego antes de mergulharmos num mar de sentidos despertos, os lábios humedecidos à nossa espera, os braços a puxarem-nos para tão próximo que o teu peito arquejava o meu, sentia-lhe o volume palpitante, a língua humedeceu os lábios por uma última vez e…