O
cheiro fresco a relva cortada amarrava-nos ao chão donde não queríamos sair,
disse-te eu, “donde nunca sairemos” corrigiste tu. Anuí, sem mexer os lábios.
A tua mão
pousada na minha, ambas a sentir a relva húmida, era a nossa única ligação
física, mas o que não se via por fora era tão mais intenso por dentro. Havia
tanto de divino naquele toque que nenhum de nós se atrevia a perturbar o
silêncio, por recear que as palavras trouxessem o dia-a-dia de volta em todas
as suas tropelias.
Éramos só nós
num momento como há muito não tínhamos, por força dos filhos, do trabalho, do
trânsito, das rotinas, enfim, da vida, e as nossas mãos unidas sobre o ventre
da terra, como um dia chamaste ao jardim que morava nas traseiras da nossa
casa, davam-nos toda a paz do mundo.
Sabes o que me
apetecia agora? – arriscaste tu dizer, numa voz tão harmoniosa que por momentos
julguei trazida de longe pela brisa, embrulhada nalguma onda da praia que se
ouvia distante.
Abri os olhos
e virei-me para ti. Os teus permaneciam fechados, mas só aparentavam. Eles viam
bem mais que os meus, sempre mais além e com maior perspicácia. Olhei em redor,
à procura de resposta para dar, e nesse caminho percorri todo o jardim e até
aquele pequeno canteiro junto à porta das traseiras. Como estava frondoso o
nosso ventre da terra, donde nasciam pigmentos amarelos, rosas, azuis e
vermelhos, numa explosão de cor que só a Primavera nos podia dar. Que deleite…
Um impulso
quase me tirou do chão para te trazer uma flor do canteiro! Mas não, não podia
ser isso. Não podia soltar-te a mão naquele momento, nem que fosse uma flor o
fruto do teu desejo. Desculpa, mas não…
Aproximei-me
então de ti, pouco a pouco, quase a pedir licença ao mundo para fazer o menor
ruído possível e com isso afastar as nuvens brancas que salpicavam o céu lá no
alto. Debrucei-me, como fazia antigamente todos os dias e agora já não tanto
quanto desejávamos, e sustive a respiração…
Estavas tão
linda, com o sol a reflectir em ti o brilho que transportavas no coração e que
me conquistara desde o início. Graças a ele tornara-me escritor e, sobretudo,
imensamente feliz.
Desconfiava
que em ti eu devia ter tido o mesmo efeito, mas sempre te conhecera assim,
radiante, e perdia-me por falta de ponto de comparação. A tua resposta nunca
mudava “Claro que fui assim toda a minha vida! Achas que melhorava tanto por
tua causa? Ó Deus, saíste-me cá um convencido de primeira…” E depois rias
preenchendo o espaço em redor com a tua felicidade. E eu contigo…
Perdíamos
tempos nisto, à conta duma frase que vinha da nossa juventude e que, apesar
disso, nunca perdera a graça. Como nós. Não que fosse verdade, acreditava eu,
mas tu nunca desfazias totalmente o mistério do teu brilho.
Num último
instante, com a respiração a acelerar e os nossos lábios prestes a mergulharem em
ondas de calor, soltaste um “Não é nada disso, tonto! Apetece-me um copo de
água fresca! Ao fim de tantos anos ainda não sabes que este sol e esta brisa me
dão sede?”
Arregalei os
olhos, os teus ainda fechados, o teu rosto indecifrável a ocupar-te a face (como
só a mim o conseguias fazer, olha que sorte!) e eu sem saber bem o que pensar.
Ganhei força
no chão para me erguer mas, assim que o fiz, tu apanhaste-me e puxaste-me para
ti sem hesitação. Os teus lábios prenderam-se aos meus e arrebataram-lhes o ar.
Como tinha saudades deste doce sufoco, deste bater de asas sem sair do lugar…
Quanto tempo
assim ficámos? Quantas nuvens passaram? Quantos beijos trocámos? Ninguém sabe e
nós não tivemos tempo para contar…