domingo, outubro 21, 2012

No ventre da terra


                O cheiro fresco a relva cortada amarrava-nos ao chão donde não queríamos sair, disse-te eu, “donde nunca sairemos” corrigiste tu. Anuí, sem mexer os lábios.
A tua mão pousada na minha, ambas a sentir a relva húmida, era a nossa única ligação física, mas o que não se via por fora era tão mais intenso por dentro. Havia tanto de divino naquele toque que nenhum de nós se atrevia a perturbar o silêncio, por recear que as palavras trouxessem o dia-a-dia de volta em todas as suas tropelias.
Éramos só nós num momento como há muito não tínhamos, por força dos filhos, do trabalho, do trânsito, das rotinas, enfim, da vida, e as nossas mãos unidas sobre o ventre da terra, como um dia chamaste ao jardim que morava nas traseiras da nossa casa, davam-nos toda a paz do mundo.
Sabes o que me apetecia agora? – arriscaste tu dizer, numa voz tão harmoniosa que por momentos julguei trazida de longe pela brisa, embrulhada nalguma onda da praia que se ouvia distante.
Abri os olhos e virei-me para ti. Os teus permaneciam fechados, mas só aparentavam. Eles viam bem mais que os meus, sempre mais além e com maior perspicácia. Olhei em redor, à procura de resposta para dar, e nesse caminho percorri todo o jardim e até aquele pequeno canteiro junto à porta das traseiras. Como estava frondoso o nosso ventre da terra, donde nasciam pigmentos amarelos, rosas, azuis e vermelhos, numa explosão de cor que só a Primavera nos podia dar. Que deleite…
Um impulso quase me tirou do chão para te trazer uma flor do canteiro! Mas não, não podia ser isso. Não podia soltar-te a mão naquele momento, nem que fosse uma flor o fruto do teu desejo. Desculpa, mas não…
Aproximei-me então de ti, pouco a pouco, quase a pedir licença ao mundo para fazer o menor ruído possível e com isso afastar as nuvens brancas que salpicavam o céu lá no alto. Debrucei-me, como fazia antigamente todos os dias e agora já não tanto quanto desejávamos, e sustive a respiração…
Estavas tão linda, com o sol a reflectir em ti o brilho que transportavas no coração e que me conquistara desde o início. Graças a ele tornara-me escritor e, sobretudo, imensamente feliz.
Desconfiava que em ti eu devia ter tido o mesmo efeito, mas sempre te conhecera assim, radiante, e perdia-me por falta de ponto de comparação. A tua resposta nunca mudava “Claro que fui assim toda a minha vida! Achas que melhorava tanto por tua causa? Ó Deus, saíste-me cá um convencido de primeira…” E depois rias preenchendo o espaço em redor com a tua felicidade. E eu contigo…
Perdíamos tempos nisto, à conta duma frase que vinha da nossa juventude e que, apesar disso, nunca perdera a graça. Como nós. Não que fosse verdade, acreditava eu, mas tu nunca desfazias totalmente o mistério do teu brilho.
Num último instante, com a respiração a acelerar e os nossos lábios prestes a mergulharem em ondas de calor, soltaste um “Não é nada disso, tonto! Apetece-me um copo de água fresca! Ao fim de tantos anos ainda não sabes que este sol e esta brisa me dão sede?”
Arregalei os olhos, os teus ainda fechados, o teu rosto indecifrável a ocupar-te a face (como só a mim o conseguias fazer, olha que sorte!) e eu sem saber bem o que pensar.
Ganhei força no chão para me erguer mas, assim que o fiz, tu apanhaste-me e puxaste-me para ti sem hesitação. Os teus lábios prenderam-se aos meus e arrebataram-lhes o ar. Como tinha saudades deste doce sufoco, deste bater de asas sem sair do lugar…
Quanto tempo assim ficámos? Quantas nuvens passaram? Quantos beijos trocámos? Ninguém sabe e nós não tivemos tempo para contar…