domingo, setembro 04, 2011

Noventa

Hoje devia estar contente. Uma enfermeira disse-me há pouco num tom jovial, ainda o sol madrugador batia outonal na minha janela, que neste dia, naquela precisa e exacta hora, eu acabara de cumprir 90 primaveras. Até se deu ao trabalho de decorar a parede branca que se debruça sobre mim com uma cartolina colorida para me “animar o dia”, palavras da pequena cujo nome se me escapa agora.
É boa moça, não posso negá-lo, sempre com um sorriso espontâneo, expressivo, tão real que enche o quarto à sua passagem, apesar da bata verde-horrível que enverga. Assenta-lhe na medida perfeita de um saco de batatas, ainda feito à moda antiga em serapilheira, mas a pobre coitada ou ignora-o ou simplesmente faz por isso. Acho que a Gertrudes, Hortência ou lá como se chama, já me falou sobre a sua bata por mais que uma vez, enquanto me ajeitava a almofada ou aconchegava a colcha, só que apenas retive o seu enorme sorriso, quase tão grande como as ancas onde se transporta.
Absorto nestes pensamentos e já um pouco surdo da idade, nem dei conta da chegada dos teus passos até mim. Vinhas linda como era habitual, numa combinação simples de saia e casaco, cujos tons branco e preto se enquadravam harmoniosamente no teu cabelo grisalho a cair sobre os ombros. Parecias uma “pin-up girl”, aquela que conseguira fisgar quase 60 anos atrás num inacreditável golpe de asa do destino.
Cruzámos o olhar por instantes e, ainda antes de dizeres o quer que fosse, desviei a atenção para a janela do quarto, contemplando o azul vazio do céu. Mesmo não vendo e já ouvindo mal, pressenti a tua boca a abrir e a fechar-se sem proferir uma palavra. Sabias a promessa em que pensava e o quanto me tinha esforçado por cumpri-la, mas o problema era o hoje, precisamente o hoje no qual, como uma lata de conserva, a promessa expirava o prazo. Nem eu acreditei que durasse até aqui…
- Na melhor das hipóteses, faltam-me 365 dias – disse, num tom pausado com os olhos humedecidos, aqueles que havia desviado de ti.
- Não sejas tonto! A promessa não era a sério, era uma brincadeira só nossa – cortaste a direito como era teu timbre.
- Eu sei disso, mas sinto dentro de mim que não vou conseguir superá-la.
- És tão idiota às vezes que até me irritas… Os médicos dizem que estás saudável, perfeito. Ainda há meses fizeste um check-up e nada!
- Estou saudável para alguém de 90 anos. Hoje em dia, quem chega a esta idade?… Quem? Para os médicos, estar saudável aos 90 é conseguir respirar sem máquinas.
- Tu… - e estilhaçaste os diques que sustinham as lágrimas inquietas dentro de ti .
- Vem até mim. Quero abraçar-te, por favor. Desculpa-me estar assim… - e também eu senti o extravasar das emoções a confundirem-se nas tuas. Que maldita promessa te fizera.
Éramos novos, eu de espírito e tu de idade, mas, apesar da década que nos separara ao nascimento, os nossos caminhos haviam-se misteriosamente cruzado graças à tecnologia a que agora, na nossa velhice, cada vez mais renunciamos. É espantoso como a juventude subestima o valor do palpável, vangloriando a essência do vazio que confundem com etéreo. Para te apaziguar o espírito em busca do amor eterno, prometi nessa época que poderias contar sempre comigo, que estaria do teu lado acontecesse o que acontecesse, mesmo quando os piores problemas de saúde te afligissem e ninguém quisesse cuidar de ti. Seria o teu porto de abrigo. Seria tudo por ti, como tu serias por mim, e duraria até aos 90, para fazer de ti uma octogenária feliz.
Até aos 90…
Nunca prometi nada para depois e bem que devia tê-lo feito em tempo útil, pois tenho um medo da Morte que é de morrer. Nem o facto de ver quase todos os meus amigos partir à minha frente me aliviou desse pânico inconsciente, pelo contrário, parece até que me relembrou sempre do que estava em jogo.
- Os nossos netos estão lá em baixo e trouxeram um bolo – soltaste por fim, já mais calma, quando afrouxaste o abraço.
- Vieram todos? – espantei-me sinceramente.
- Todinhos, até a Adriana que só tem 6 meses!
- Não me lembro dela… E onde ficaram instalados?
- Na nossa casa, claro. Devidamente aconchegados, couberam lá todos, tal como os nossos filhos, mais a nora e o genro. Bem, alguns dos pequenos pediram para acampar no jardim e ninguém se importou de vê-los tão felizes.
- Só faltava lá eu… – entristeci novamente.
- Nunca! Sabes bem que é impossível a família esquecer-te. Recordámos as tuas histórias ao jantar e o traquinas do Gaspar decidiu imitar as tuas gargalhadas o serão inteiro. Até caiu no chão de tanto rir! Como vês, mesmo quando não podes estar lá fisicamente, todos sentimos que estavas presente.
- Desculpa, meu amor.
- É claro que estás desculpado, tontinho… Eu só gostava de saber o que raio estavas tu a fazer em cima da cadeira antes de caíres e partires a anca!
- Se eu soubesse, dizia. Mas aposto que era algo de imprescindível!
- Ó sim, claro que era! Quando Vossa Excelência se põe com ideias de fazer bricolage é porque o assunto é seríssimo… – a ironia fica-te tão bem – Mas, descansa, que ninguém morre de uma anca partida, meu velhote!
- Não digas disparates, minha jovem de 80 anos, e chama lá toda a gente para cima. Tenho saudades deles… E tinha tantas saudades tuas!

sábado, setembro 03, 2011

Sebe desfeita

Eu vou cortar-te um braço
E tentar fingir que me esqueço
De vê-lo tão virado do avesso
Como se fosse nó de laço.

Eu vou tirar-te um rim
E filtrar por ele toda a prosa
Negro plúmbeo em vã glosa
Disparada pelo teu cetim.

Eu vou trincar-te a língua
Tão bífida, essa velha amiga
Livrá-la da retorcida intriga
Que rendilhava sempre ambígua.

Eu vou vazar-te a vista
Pintar nela o quadro escuro
Onde sepultavas o meu muro
Para a tua próxima conquista.

Eu vou cravar-te o coração
Espojá-lo do seu jardim secreto
Que em tempos contemplei de tão perto
Ditarei o fim à tua admiração.

E então serás perfeita
Qual boneca de porcelana
Em estado pleno de nirvana
Uma sebe desfeita.