quarta-feira, setembro 23, 2009

...

Lá fora, um céu cor de chumbo anuncia o regresso a casa às filas de trânsito vespertinas e eu ainda nem saí. Passei todo o dia em cima da cama apática, olhando com ternura para a minha nova companheira de quarto, uma pequena mancha que se deitou na parede junto à mesinha de cabeceira. Deixa-me dormir um pouco, parecia dizer, que ontem tive um dia extenuante, mais logo falamos. E por ali ficou. E eu a olhar para ela.
Na marcha lenta das nuvens, acabei por entalhar na memória os contornos negros desta mancha da minha perdição, o seu tom esbatido, a sua forma acanhada, quase acocorada, o traço irregular que não esconde ainda assim uma gordurinha a definir-lhe o centro de gravidade, tudo humedecido por um olhar disperso
(ou será apenas meu reflexo?)
no vazio da alvura que me angustia perdidamente.
De tão abandonada no deserto de cor, aquela mancha poderia muito bem ser um ponto final num texto que ainda nada disse, matando à nascença todas as palavras que mudariam o mundo, ou um ponto de fuga num cenário impressionista que não chegou a romper das mãos do pintor. Mas não é. Talvez fosse antes a indicação da capital dum país sugado pelo mapa terrestre ou o sinal que rebenta nas peles mais claras
(deixei-te muito tempo ao sol?)
numa dúvida cancerígena que assola a mente. Mas não é. Até poderia ser aquele olho cavernoso que demente nos persegue pelas sombras e esquinas das estreitas vielas, mas não, não é – nem nunca será – nada disso. É apenas e só uma singela mancha sobre a qual
(pouco quero contar?)
pouco sei.
Minto.
Sei. Tudo a seu respeito, como nasceu e a que horas, quem a pincelou de negro no meu quarto branco para depois sair à pressa e até sei, veja-se só quanto sei!, qual o dia da sua morte. Anunciada. Ou melhor, encomendada por telemóvel, ainda o sol recortava os telhados, ao bigode do Sr. Luís, pintor profissional durante o dia e bêbado pela noite fora. Só 6.ª feira é que posso, respondeu-me.
Para não vê-la mais naquele desencanto próprio de alguém que tem os dias contados, decidi dar esta noite à minha mancha um sentido do tamanho da vida. Até ao fim da semana, já não andará perdida numa tela com janela, duvidando se é ponto ou sinal ou um espaço preenchido a mal, pois a seu lado vou rabiscar duas manchas iguais à original. Inseparáveis na vida e na morte, responderão pelo nome de reticências…

Sem comentários: